Expresso Para o Inferno (1985)


Duas temáticas muito interessantes exploradas pelo cinema se juntaram de forma complementar resultando num filme inesquecível e significativo dos anos 1980. “Expresso Para o Inferno” (Runaway Train, 1985), dirigido por Andrei Konchalovsky, é uma excepcional e marcante aventura envolvendo fuga de uma penitenciária com a tragédia de um trem desgovernado.
O cinema já apresentou vários filmes que mostravam em suas histórias fugas de prisões, como o divertido “Alcatraz: Fuga Impossível” (Escape from Alcatraz, 1979), dirigido por Don Siegel e com Clint Eastwood; e situações envolvendo trens fora de controle, como “O Trem Desgovernado” (Final Run, 1999). Mas a união dessas duas idéias combinadas resultou num filme perturbador cujo título nacional, surpreendentemente muito bem escolhido, reflete de forma definitiva seu significado: um “Expresso Para o Inferno”.
Com um elenco liderado pelo genial Jon Voight, a história fala de um lendário prisioneiro, Manny (Voight, numa maquiagem que lhe conferiu deformações e cicatrizes no rosto), um perigoso ladrão de bancos, que cumpre pena no presídio de segurança máxima “Stonehaven”, localizado no Alasca (EUA), com sua baixíssima temperatura e constantes tempestades de neve. Ele é notícia na televisão, pois estava enjaulado por três anos numa cela solitária devido a uma guerra particular com o diretor do presídio, Ranken (John P. Ryan), sendo inimigos de longa data. Uma vez ganhando um processo contra seus carcereiros, e anunciado pela televisão, ele é finalmente transferido para uma cela normal, com direito aos passeios pelo pátio e ver a luz do dia novamente.
Manny é considerado um ídolo e herói pelos outros detentos, devido ao fato dele ser um especialista em fugas e um criminoso famoso por sua coragem e valentia. E tão logo ele sai da solitária, já planeja uma forma de fugir, contando com a ajuda de um jovem lutador de boxe, Buck Logan (Eric Roberts, irmão da estrela Julia Roberts), que estava preso com a acusação de estupro de uma menor de idade, e era o responsável pela condução do carrinho que transporta as roupas sujas. Porém, Logan, um típico jovem idiota com pouca inteligência no cérebro e tendência para falar e cometer erros demais, insiste em fugir com Manny e ambos acabam escapando da prisão pelo sistema de esgoto. Uma vez do lado de fora, eles tem que enfrentar a gélida temperatura numa tortuosa caminhada até chegarem numa estação ferroviária. De forma aleatória, Manny escolhe um trem com quatro vagões para fugir do local.
O maquinista do trem escolhido acaba tendo um ataque cardíaco e morre caindo na estrada de ferro momentos após sua partida. Com um problema mecânico, os freios falham e o trem passa então a vagar sem condução em alta velocidade. A equipe da central de controle, liderada pelo superintendente da companhia de trens, Eddy MacDonald (Kenneth McMillan), e pelo engenheiro Barstow, responsável pelo projeto de segurança da ferrovia, tentam de todas as formas parar a máquina desgovernada e evitar algum acidente com outros veículos. Porém, uma manobra de desvio vagarosa de um trem de carga ocasionou um choque entre eles com sérias avarias, eliminando agora a possibilidade de controlar o trem desgovernado através dos computadores.
À bordo do trem fora de controle, está também uma funcionária da ferrovia, Sara (Rebecca DeMornay), que junta-se aos presidiários Manny e Logan na tentativa de salvarem suas vidas. Enquanto isso, o diretor Ranken inicia uma perseguição por helicóptero para recapturar seu detento fugitivo, e ele e Manny travam uma guerra particular em meio ao caos de um trem desgovernado rumo ao inferno.
O filme tem vários momentos antológicos, numa história eletrizante que é impossível de se esquecer. O personagem de Manny é o arquétipo do homem que não acredita em milagres, somente em si mesmo e nas suas atitudes e ações para definir o destino, utilizando-se de muita coragem para enfrentar todos os tipos de perigos que o cercam, e encarando a morte constantemente com valentia, sendo um criminoso idolatrado pelos companheiros de ofício por sua bravura exemplar. Porém, ele faz questão de tentar explicar para o jovem rebelde Logan que toda essa “grandeza” de personalidade é uma ilusão e que gostaria de ter uma vida diferente. Roubar, ser preso, fugir, voltar ao crime, voltar a ser preso, num ciclo vicioso sem perspectiva. Nada melhor do que o agressivo discurso do diretor Ranken definindo seus prisioneiros, para compreender a angústia de quem perdeu a liberdade: “Vocês são vagabundos escondidos aí e gritando no escuro! Ouçam qual é a posição de vocês! Primeiro vem Deus, depois o diretor do presídio. Depois vem meus guardas, depois os cães lá no canil. E por fim, vem vocês, restos da escória humana! Imprestáveis para si mesmos ou para o mundo!
Durante um momento de tensão no trem desgovernado, numa briga entre Manny e Logan, o roteiro baseado num texto do prestigiado cineasta Akira Kurosawa, nos reservou um diálogo entre Manny e a jovem Sara que sintetiza de forma totalmente definitiva, o conceito de irracionalidade da humanidade. Nossa espécie, em muitos momentos de sua constante evolução, consegue atingir níveis de bestialidade de dimensões incomensuráveis, através de guerras e atitudes de extrema barbaridade. Dentro de um dos vagões com destino ao inferno, Sara, desesperada por Manny estar agredindo violentamente o companheiro de fuga Logan, gritou para ele: “Você é um animal!”. E a resposta foi avassaladora: “Não!... Pior... sou um Humano!”.
Como curiosidade, temos uma cena em que o engenheiro Barstow, desanimado pela impossibilidade de controlar o trem desgovernado através de seus computadores, pergunta-se para que adianta tanta tecnologia se não consegue parar um trem. A tecnologia está a serviço da humanidade (para fazer guerras por exemplo), mas não é soberana e não consegue controlar plenamente o mundo e seus problemas. É interessante notar que a alta tecnologia existente nos equipamentos modernos no filme, é completamente obsoleta em comparação com os dias de hoje. No filme, podemos ver computadores antiquados e ultrapassados, num prova clara da velocidade do desenvolvimento tecnológico que está em curso atualmente. O filme não é velho, fazendo parte da recente década de 1980 do século passado, mas após quase vinte anos desde sua produção, podemos notar as enormes diferenças de modernidade entre os equipamentos.
O desfecho final é simplesmente um dos mais espetaculares da história, impossível de esquecer, figurando para sempre na memória dos apreciadores do cinema, num misto de clichê feliz (mas que pode ser totalmente aceitável, sendo explicado pela citação de William Shakespeare antes da exibição dos letreiros, e reproduzida a seguir) e principalmente perturbador, envolvendo a guerra particular sem vencedores entre Manny e Ranken.
E eu encerro este texto com as palavras de Manny, para refletir:
Ambos somos escória... Vencer... perder... Qual é a diferença?

Nenhuma fera é tão cruel que não conheça algum toque de piedade. Mas eu não conheço nenhuma, e portanto não sou uma fera” (No beast so fierce but knows some touch of pielty. But I know none, and therefore am no beast)
– Ricardo III (William Shakespeare)

“Expresso Para o Inferno” (Runaway Train, 1985) – avaliação: 9 (de 0 a 10)
site: www.bocadoinferno.com / blog: www.juvenatrix.blogspot.com (postado em 06/01/06)

Expresso Para o Inferno (Runaway Train, Estados Unidos, 1985). Duração: 111 minutos. Em vídeo VHS pela América. Direção de Andrei Konchalovsky. Roteiro de Djorje Milicevic, Paul Zindel e Edward Bunker, baseado em roteiro de Akira Kurosawa. Produção de Menahem Golan e Yoram Globus. Fotografia de Alan Hume. Música de Trevor Jones. Elenco: Jon Voight, Eric Roberts, Rebecca DeMornay, John P. Ryan, T. K. Carter, Kyle T. Heffner, Kenneth McMillan, Stacey Pickren, Reid Cruikshanks.