Calafrios (Shivers, Canadá, 1975)


Se você pensa que não tem medo do escuro... Se você pensa que tem um estômago forte... Se você sente que nada pode chocá-lo... Se você diz que não se assusta facilmente... Se você acredita que já tinha visto de tudo... Então prepare-se para Calafrios

Com essas sonoras palavras reproduzidas de um trailer promocional de “Calafrios” (Shivers, 1975), já podemos ter uma idéia do tipo de cinema de horror que caracteriza a obra de David Cronenberg, um dos mais cultuados diretores do estilo, ao lado de nomes como George Romero, John Carpenter, Dario Argento, Lucio Fulci, Peter Jackson, Sam Raimi, Wes Craven, Roger Corman, Terence Fisher e outros. Com esse seu primeiro trabalho distribuído comercialmente, Cronenberg já deixaria registrada a sua marca como um cineasta diferenciado, especialista em manipular temas polêmicos e expor a escatologia e o horror explícito em seus filmes.

(Atenção: o texto a seguir contém spoilers)

A história é ambientada no luxuoso condomínio “Starliner”, localizado numa bela ilha no Canadá. Lá, sem saberem, os moradores seriam vítimas de uma doença contagiosa, disseminada através de um parasita mutante criada em laboratório por manipulação de engenharia genética, a qual teria a função de substituir orgãos humanos. Porém, sua maior consequência é estimular a violência sexual nas pessoas infectadas, incitando-as a atitudes bizarras, numa epidemia desenfreada. O responsável pela criação do verme é o Dr. Hobbes (Fred Doederlein), que uma vez utilizando como cobaia uma jovem estudante, Annabelle Brown (Kathy Graham), acaba descobrindo os efeitos nocivos da doença levando-o a cometer um violento assassinato seguido de suicídio.
Como a jovem infectada mantinha relações promíscuas com outros moradores do prédio, o parasita começou a se espalhar rapidamente no corpo de homens e mulheres, crianças e adultos. Entre os habitantes do condomínio e candidatos a vítimas dos vermes está um casal formado pelo corretor de seguros Nicholas Tudor (Alan Migicovsky) e sua bela esposa Janine (Sue Petrie), a amiga lésbica de Janine, Betts (Barbara Steele), o médico Dr. Roger St. Luc (Paul Hampton) e sua enfermeira e namorada Forsythe (Lynn Lowry), além do casal sueco Kresimir Sviben (Vlasta Vrana) e Brenda (Silvie Debois), os idosos Sr. e Sra. Guilbault (Camil Ducharme e Hanka Posnanska, respectivamente), o agente imobiliário Merrick (Ronald Mlodzik), entre outros. E surge também um cientista, Dr. Rollo Linsky (Joe Silver), antigo colega do Dr. Hobbes, que foi o primeiro a descobrir sobre as experiências com os parasitas e seu desenvolvimento no sistema circulatório do hospedeiro, além das graves consequências da epidemia.

“Calafrios” é um filme com correrias, brigas, violência repulsiva, comportamentos sexuais bizarros, assassinatos e sangue, e aborda com maestria a temática da histeria coletiva, através de um parasita criado em laboratório que espalha rapidamente uma epidemia entre a humanidade, despertando uma fúria de violência sexual fora de controle, que até poderia ser vista como uma metáfora profética da AIDS. Alguns de seus elementos serviram claramente de inspiração para o clássico “Alien, o Oitavo Passageiro” (79), de Ridley Scott, principalmente na idéia de um criatura monstruosa contaminando as pessoas de um condomínio ou a tripulação de um cargueiro estelar, e na cena do personagem Kane (John Hurt), com o parasita alienígena abandonando o hospedeiro rasgando violentamente seu abdômen. Além de “Alien”, uma infinidade de outros filmes utilizou essa obra de Cronenberg como fonte precursora de idéias envolvendo epidemias, histeria, violência, e ambientes de claustrofobia com uma doença contaminando a todos sem escapatória, instaurando um estado agonizante de caos.
O filme explora o argumento de que a humanidade possui muito cérebro e pouca garra, e a criação de um parasita viria justamente aumentar essa garra, “numa combinação de doença afrodisíaca e venérea que transformaria o mundo numa orgia linda e desenfreada, pois o Homem é um animal que pensa demais e que perdeu o contato com seu corpo e instintos”, conforme as palavras do cientista Dr. Emil Hobbes.
Um dos destaques em “Calafrios”, e um ponto super positivo para David Cronenberg, é o seu brilhante desfecho, ousado e não convencional, fugindo daqueles finais óbvios, previsíveis e invariavelmente felizes, que estão presentes na grande maioria dos filmes similares. A epidemia não tem realmente controle, e depois de infectar todos os moradores do condomínio de luxo, sem exceção, as pessoas contaminadas pela parasita que estimula a violência e os prazeres sexuais, saem do prédio guiando seus próprios carros em direção ao resto do mundo, para disseminar a loucura sexual entre a humanidade.

“Calafrios” foi lançado em DVD no Brasil pela “Continental”, especializada na distribuição de clássicos no formato digital, e que também distribuiu o filme com um preço mais popular nas bancas, encartado em revistas de cinema. Entre o material extra, está a biografia e filmografia do cineasta David Cronenberg, um trailer de cerca de um minuto e meio e sem legendas, além de uma interessante entrevista de 21 minutos legendada em português, com o diretor revelando detalhes do filme, trazendo uma série de curiosidades de bastidores e informações sobre os efeitos especiais, o elenco e as várias dificuldades técnicas para a produção, principalmente devido ao baixo orçamento disponível de menos de US$ 200 mil.
Entre as curiosidades reveladas por Cronenberg em sua entrevista, destaca-se o fato da bela atriz Susan Petrie ter muita dificuldade em chorar em cena, e que tenha pedido para o diretor sempre esbofetear seus rosto com força momentos antes de filmar, para justamente facilitar (mesmo que de forma dolorosa) as cenas em que chora no filme. Quando a experiente atriz Barbara Steele descobriu essa situação bizarra, ela se revoltou e quase agrediu Cronenberg, somente se acalmando após saber que o espancamento era na verdade um pedido da própria atriz Susan Petrie para ajudá-la em sua performance (sua personagem é uma mulher sofrida que tem o marido com uma doença misteriosa, e está na maioria das vezes chorando para expressar sua tristeza). Outro detalhe interessante revelado por Cronenberg em sua entrevista foi a enorme dificuldade que ele enfrentou para se fazer um filme de horror em seu país natal, o Canadá, onde as pessoas não estavam acostumadas com histórias de horror ambientadas na atualidade de suas produções, prevalecendo sempre os tradicionais argumentos apresentando castelos, vampiros e todos aqueles elementos góticos representativos de vários séculos no passado.

O cineasta canadense David Cronenberg nasceu em 1943 em Toronto, e é um dos mais cultuados diretores do cinema fantástico atual, principalmente pelos temas bizarros, polêmicos e escatológicos de seus filmes. Por causa de sua obra cinematográfica ele recebeu alguns títulos curiosos como “Rei do Horror Venéreo” ou “Barão do Sangue”. Sua filmografia inclui mais de trinta trabalhos numa carreira de quase quarenta anos. Além de “Calafrios”, seu primeiro filme com uma distribuição comercial, outros destaques de seu significativo currículo são “Enraivecida na Fúria do Sexo” (Rabid, 77), “Os Filhos do Medo” (The Brood, 79), “Scanners – Sua Mente Pode Destruir” (Scanners, 81), “Videodrome – A Síndrome do Vídeo” (Videodrome, 82), “A Hora da Zona Morta” (The Dead Zone, 83), “A Mosca” (The Fly, 86, refilmagem de “A Mosca da Cabeça Branca”, 58), “Gêmeos, Mórbida Semelhança” (Dead Ringers, 88), “Mistérios e Paixões” (Naked Lunch, 91), “Crash – Estranhos Prazeres” (Crash, 96), “ExistenZ” (99), e “Spider – Desafie Sua Mente” (Spider, 2002).
O produtor de “Calafrios”, Ivan Reitman, nasceu em 1946 na Eslováquia, e ficou conhecido mais tarde pela direção de conhecidas comédias com elementos fantásticos como os dois filmes da série “Os Caça-Fantasmas” (Ghostbusters) em 1984 e 89, além de “Evolução” (2001), e a aventura “Seis Dias, Sete Noites” (98), com Harrison Ford e Anne Heche.
Quanto ao elenco do filme, destaca-se a presença da atriz Barbara Steele, musa do cinema gótico de horror da década de 1960. Inglesa nascida em 1937, ela participou de vários filmes italianos como “A Maldição do Demônio” (Black Sunday, 60), de Mario Bava, “A Máscara do Demônio” e “Dança Macabra” (ambos de 64 e com direção de Antonio Margherite), além de “A Mansão do Terror” (The Pit and the Pendulum, 61), com história inspirada em Edgar Allan Poe, dirigida por Roger Corman e com Vincent Price, “A Maldição do Altar Escarlate” (Curse of the Crimson Altar, 68), ao lado de Boris Karloff e Christopher Lee, e “Piranha” (78), de Joe Dante, entre outros mais.
Curiosamente, “Calafrios” (tradução em português para “Shivers”) é mais um daqueles filmes que receberam vários outros nomes alternativos em sua distribuição pelo mundo, contribuindo ainda mais para confundir os fãs, pesquisadores e colecionadores, sendo conhecido também como “The Parasite Murders”, “Frissons”, “They Came From Within”, “Orgy of the Blood Parasites”, e “The Parasite Complex”.

Todo mundo é um cientista louco, e a vida é seu laboratório. Nós todos estamos tentando experimentar e encontrar um caminho para viver, para solucionar problemas, para afastar a loucura e o caos” – David Cronenberg

“Calafrios” (Shivers, 1975) # 226 – data: 26/02/04 – avaliação: 7,5 (de 0 a 10)
site: www.bocadoinferno.com / blog: www.juvenatrix.blogspot.com (postado em 09/12/05)

Calafrios (Shivers, Canadá, 1975). Duração: 87 minutos. Direção e roteiro de David Cronenberg. Produção de Ivan Reitman e Don Carmody. Produção Executiva de Alfred Pariser. Fotografia de Robert Saad. Música de Ivan Reitman. Edição de Patrick Dodd. Direção de Arte de Erla Gilserman. Efeitos Especiais e Maquiagem de Joe Blasco. Elenco: Paul Hampton (Dr. Roger St. Luc), Joe Silver (Dr. Rollo Linsky), Lynn Lowry (Enfermeira Forsythe), Barbara Steele (Betts), Susan Petrie (Janine Tudor), Alan Migicovsky (Nicholas Tudor), Kathy Graham (Annabelle Brown), Fred Doederlein (Dr. Emil Hobbes), Vlasta Vrana (Kresimir Sviben), Silvie Debois (Brenda Sviben), Camil Ducharme (Sr. Guilbault), Hanka Posnanska (Sra. Guilbault), Ronald Mlodzik (Merrick), Barry Baldaro, Wally Martin, Charles Perley, Al Rochman, Julie Wildman, Arthur Grosser, Edith Johnson, Dorothy Davis, Joy Coghill, Joan Blackman, Kirsten Bishop, Sonny Forbes, Nora Johnson, Robert Brennen, Felicia Schulman, Roy Wittan, Denis Payne, Kevin Fenlow.