O Médico e o Monstro (1932)


Minha análise da alma, da psique humana, leva-me a crer que o ser humano não é verdadeiramente um, mas verdadeiramente dois. Um deles esforça-se para alcançar tudo que é nobre na vida. É o que chamamos de lado bom. O outro, quer expressar impulsos que prendam-no a obscuras relações animais com a terra. Esse é o que podemos chamar de mal. Ambos travam um eterno combate no íntimo da natureza humana, e contudo, estão atados um ao outro. E este elo provoca a repressão ao mau e remorsos no bom. Agora, se esses dois seres pudessem ser separados um do outro, quão livre o bom em nós poderia ser, que alturas poderia alcançar! E o assim chamado mal, uma vez liberto, buscaria sua própria realização, e deixaria de nos perturbar...

Com esse profundo discurso inflamado para uma platéia de acadêmicos numa universidade, o médico cientista Dr. Henry Jekyll, interpretado por Fredric March (1897/1975), que ganhou um Prêmio Oscar por sua atuação, apresenta sua visão da real natureza humana e divulga suas experiências com uma poção química capaz de separar as duas personalidades existentes no Homem, evidenciando seus lados “bom” e “mal”, na versão expressionista de 1932 de “O Médico e o Monstro” (Dr. Jekyll and Mr. Hyde).
O livro clássico do escocês Robert Louis Stevenson (1850/1894), escrito em 1886 com o nome original de “The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, é um dos mais filmados na história do cinema fantástico, com uma infinidade de versões das quais podemos a título de ilustração citar quatro produções antigas. Uma da época do cinema mudo (1920), de John S. Robertson e estrelada por John Barrymore, a já citada versão de 32, dirigida e produzida por Rouben Mamoulian e com Fredric March, o filme de 41, de Victor Fleming e com Spencer Tracy, Ingrid Bergman e Lana Turner, sendo essas três versões com fotografia em preto e branco, e finalmente “O Soro Maldito” (I, Monster, 71), produção inglesa da “Amicus” protagonizada pela dupla Christopher Lee e Peter Cushing, além do misterioso Mike Raven.

A história é ambientada na Londres do final do século XIX, onde o respeitado médico Dr. Henry Jekyll é o defensor de uma teoria onde existem dois lados totalmente distintos nos homens, um “bom” e um “mal”. Acreditando que ao separar essas duas personalidades poderia dar mais liberdade ao ser humano, ele então decide criar uma substância química capaz de realizar tal feito. Testando em si próprio, os efeitos são devastadores, fazendo-o alternar entre o recatado Dr. Jekyll e o monstruoso Sr. Hyde, responsável por uma série de crimes horrendos. Ao descobrir que na verdade libertou um monstro interior, o médico tentou interromper a dosagem da poção, mas já era tarde demais e ele perdera o controle sobre suas duas personalidades, colocando em risco a vida das pessoas que o cercam como seu amigo Dr. Lanyon (Holmes Herbert), sua amável noiva Muriel Carew (Rose Hobart), o rígido pai dela, General Carew (Halliwell Hobbes), e uma bela dançarina de bar noturno, Ivy Pearson (Miriam Hopkins), uma jovem atormentada pela tirania do Sr. Hyde.

Essa versão de “O Médico e o Monstro” tem algumas falhas de continuidade e erros de edição com inconvenientes cortes abruptos, mas levando-se em consideração que o filme foi produzido logo após o término do cinema mudo, há mais de setenta anos atrás, com as técnicas de filmagens sendo ainda aprimoradas, esses detalhes têm pouca importância e podem ser até desconsiderados. E, em contrapartida, os maiores destaques do filme certamente são o laboratório do Dr. Jekyll e todas as cenas envolvendo o Sr. Hyde, representando o lado maligno do ser humano, ávido pelos prazeres da carne, num trabalho de maquiagem muito bem produzido, principalmente para a tão distante década de 30. O laboratório é o típico ambiente para os “cientistas loucos” concretizarem suas bizarras experiências ameaçadoras para a humanidade, repleto de frascos de vidro com líquidos estranhos borbulhantes, tubos de ensaio, microscópios e equipamentos elétricos diversos. A caracterização de Fredric March no monstruoso Sr. Hyde é extremamente marcante, e após o cientista ingerir uma misteriosa poção química ele transforma-se rapidamente numa criatura horrenda, com enormes dentes pontudos e protuberantes, olheiras profundas, sobrancelhas espessas e inchadas, além de mãos peludas que dão um aspecto selvagem ao Sr. Hyde, com voz, postura e forma de caminhar totalmente diferentes do Dr. Jekyll. Depois de um certo tempo, após ingerir o líquido várias vezes, o cientista já não podia mais controlar a transformação, e de forma aleatória, mesmo sem beber a poção, ele alterava contra sua vontade as feições para o malévolo Sr. Hyde.
Outro momento interessante é a súplica de arrependimento do desesperado Dr. Jekyll ao perder o controle sobre sua experiência, num fato bastante recorrente no cinema fantástico onde os “cientistas loucos” costumam percorrer caminhos proibidos em busca de conhecimento, como por exemplo a clássica história do Dr. Frankenstein e seu monstro gerado a partir de reciclagem de pedaços de cadáveres humanos, e que igualmente perde o controle sobre sua criação bizarra.
Seguem as palavras de agonia do Dr. Jekyll:
Ó Deus! Não era esse o meu desígnio! Eu vi uma luz, mas não enxerguei onde ela me levaria. Invadi os Seus domínios. Fui além do que um homem deveria ir. Perdoe-me. Ajude-me!

“O Médico e o Monstro” foi lançado em DVD no Brasil pela “Warner” em Janeiro de 2004 num disco contendo no “lado A” a versão de 1932 e no “lado B” o filme de 41. Aliás, isso tem acontecido também com outros clássicos do horror como “Museu de Cera” (53) e “Os Crimes do Museu” (33), lançados num mesmo disco, e as duas versões de “À Meia-Luz” (Gaslight), tanto a inglesa de 40 quanto a americana de 44.
A capa do DVD nacional de “O Médico e o Monstro” possui um erro significativo, onde na apresentação do filme de 41, está indicado que a direção é de Robert Louis quando o correto é Victor Fleming. O material extra só está disponível no “lado A”, trazendo um episódio de sete minutos do desenho animado “Pernalonga” (Bugs Bunny), criado na década de 40, colorido e com opção de legendas em português, abordando a famosa história de horror de Stevenson. O nome do episódio é “O Coelho e o Monstro” (Hyde and Hare) e é muito divertido, mostrando Pernalonga se metendo em encrencas com um velhinho cientista que alterna constantemente sua personalidade entre o “bom” e o “mal”. Completam ainda os extras um trailer da versão de 41, sem legendas, e a exibição do filme de 32 com comentários de Greg Mank, infelizmente também sem a opção de legendas em português.
A versão muda de 1920 também foi lançada no mercado brasileiro de DVD em Novembro de 2005, através da revista digital “Showtime Clássicos”, da “Aspen Editora”, com o disco sendo distribuído nos grandes supermercados por um preço popular (R$ 9,90). A revista digital traz como atrações: “Literatura nas Telas” – A relação entre o cinema e os clássicos; “Clássicos de Horror” – Os primeiros do cinema mudo; “Mundo Perdido – Os primeiros dinossauros do cinema”.

Por curiosidade, vale a pena citar mais alguns outros filmes baseados na cultuada obra de Robert Louis Stevenson sobre as experiências do Dr. Jekyll, que aliás acabou tornando-se um dos importantes personagens da história do cinema de horror, sendo tema de muitos filmes e figurando numa galeria imortal já composta por nomes consagrados como “Drácula”, “Criatura de Frankenstein”, “Lobisomem”, “Múmia”, “Fantasma da Ópera”, “Monstro da Lagoa Negra”, “Homem Invisível”, “Zé do Caixão”, e outros.
Além das já citadas versões de 1920, 32 e 41 de “O Médico e o Monstro”, ainda temos uma produção inglesa da “Hammer” de 60, “O Monstro de Duas Caras” (The Two Faces of Dr. Jekyll), de Terence Fisher e com Christopher Lee, uma versão de 68 para a TV, dirigida por Charles Jarrott e com Jack Palance no papel duplo de Dr. Jekyll e Sr. Hyde, e mais recentemente um filme produzido em 2002 com direção de Maurice Phillips e com John Hannah no papel principal. Alguns outros atores que também experimentaram a sensação de atuarem como as duas personalidades do médico cavalheiro imaginado por Stevenson foram Boris Karloff numa comédia com Bud Abbott e Lou Costello em 53, Michael Rennie (na série de TV “Climax”, 54/58), Denis DeMarne (em 72), Kirk Douglas (73), David Hemmings (81), Anthony Andrews e Anthony Perkins (ambos em 89), Adam Baldwin (99) e Mark Redfield (2002). E em 71, no filme “O Médico e a Irmã Monstro” (Dr. Jekyll and Sister Hyde), da “Hammer”, Ralph Bates foi o cientista e Martine Beswick interpretou seu alter-ego, sendo nesse caso uma mulher maligna.

Um é exemplo de perfeição e virtude. O outro é a criatura assassina das noites de Londres. Eles são Dr. Jekyll e Sr. Hyde. E eles são a mesma pessoa.

“O Médico e o Monstro” (Dr. Jekyll and Mr. Hyde, 1932) # 237 – 08/04/04 – avaliação: 8 (de 0 a 10)
site: www.bocadoinferno.com / blog: www.juvenatrix.blogspot.com (postado em 25/11/05)

O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde, Estados Unidos, 1932). Paramount Pictures, 96 minutos. Direção e produção de Rouben Mamoulian. Roteiro de Samuel Hffenstein e Percy Heath, baseados em livro de Robert Louis Stevenson. Fotografia de Karl Struss. Direção de Arte de Hans Dreier. Maquiagem de Wally Westmore. Elenco: Fredric March (Dr. Jekyll / Sr. Hyde), Miriam Hopkins (Ivy Pearson), Rose Hobart (Muriel Carew), Holmes Herbert (Dr. Lanyon), Halliwell Hobbes (General Carew), Edgar Norton (Poole), Arnold Lucy, Tempe Piggott.