No cinema de horror, é interessante salientar a existência e fazer uma análise de dois sub-gêneros principais com características e estilos distintos, que foram criados de forma natural ao longo de mais de um século de cinema.
Um deles é mais antigo, numa época onde os filmes se preocupavam em enriquecer os roteiros e transmitir ao público uma sensação de medo e pavor, através principalmente de situações sugeridas que causavam desconforto. As histórias exploravam temas sobrenaturais como mansões assombradas, maldições, “cientistas loucos”, fantasmas, ou mesmo os grandes monstros consagrados do cinema como o vampiro “Drácula” (tendo o filme homônimo de 1931 com Bela Lugosi como um de seus expoentes máximos); a “Criatura de Frankenstein” (retratada no clássico de 1931 pelo magnífico ator Boris Karloff); o “Lobisomem” (1941, com Lon Chaney Jr.); a “Múmia” (1932, com Boris Karloff), o “Monstro da Lagoa Negra” (1954, uma criatura mutante, misto de homem e anfíbio); o “Fantasma da Ópera” (1926, com Lon Chaney como um psicopata desfigurado); e outras dezenas de produções de baixo orçamento, porém de alto entretenimento.
O outro sub-gênero veio somente mais tarde sendo representado pelos filmes de “violência explícita”, ou aqueles cujos roteiros procuram mostrar o horror de forma mais crua e direta em vez de apenas a sugestão. O objetivo não é somente assustar como também enojar o público. As histórias em sua maioria são clichês desgastados prevalecendo muitas vezes os impressionantes efeitos especiais. As características principais desses filmes é a presença de muito sangue, tripas, vômitos, mutilações, massacres, demônios, psicopatas, monstros asquerosos, etc. Pertencentes a esse contexto, citamos apenas alguns entre muitos outros, como o clássico em preto e branco “A Noite dos Mortos Vivos” (dirigido pelo mestre George Romero em 1968, com sua legião de zumbis comedores de carne humana); a enorme franquia “Sexta-Feira 13” (saga que iniciou em 1980 com o imortal psicopata Jason Voorhees batendo o recorde de assassinatos de adolescentes, e de sequências também); o clássico “O Massacre da Serra Elétrica” (1974, introduzindo o maníaco da moto-serra “Leatherface”); “Hellraiser” (1987, inspirado em obra do escritor Clive Barker, com suas criaturas do inferno lideradas por “Pinhead”); e sem dúvida nenhuma, um dos maiores e mais definitivos representantes do estilo, “The Evil Dead”.
Infelizmente para nós brasileiros, foi feita uma verdadeira bagunça com os títulos dos dois primeiros filmes da franquia. The Evil Dead (1982) foi lançado em vídeo VHS pela “Look” com o nome de “A Morte do Demônio”. Esse mesmo filme foi exibido nos cinemas como “Uma Noite Alucinante – Parte 1 – Onde Tudo Começou”. Já Evil Dead II (1987) foi lançado em vídeo VHS pela “Tec Home” com o nome de “Uma Noite Alucinante” e foi exibido nos cinemas em 1988 com esse mesmo nome, seguido do subtítulo “Mortos ao Amanhecer”. Toda essa confusão aconteceu porque o segundo filme estreou por aqui antes do original.
E para complicar mais ainda, vale registrar um protesto quanto ao péssimo título nacional escolhido para “The Evil Dead”. O filme recebeu o nome equivocado de “A Morte do Demônio” quando o ideal seria manter o título original. Porém, se ainda assim os responsáveis pela distribuição da fita no país preferissem optar por um nome nacional, o mais correto seria algo como “Os Mortos Malignos”, uma tradução literal e mais coerente com a obra.
Toda essa longa introdução teve por objetivo situar o leitor e fã para uma interpretação de dois tipos básicos do cinema de horror: o “sugerido” e o “explícito”. Nessa última categoria os últimos anos foram invadidos por uma avalanche de produções com verdadeiros banhos de sangue em suas histórias. Filmes como “Fome Animal” (1990, de Peter Jackson, que mais tarde dirigiria a trilogia de “O Senhor dos Anéis”), mostram um excesso tão grande de tripas e corpos decepados que parece que recebemos uma chuva de sangue ao ver o filme. Só que no caso específico desse filme, a história tem muitos elementos de humor negro inseridos em sua trama, a qual tem o objetivo de enojar o público em meio a momentos de risos. Comparando com “The Evil Dead”, este último tem menos “sangue”, mas não há humor negro. Se o espectador rir de alguma coisa que está vendo na tela, não é porque é engraçado, e sim porque está transtornado pelas cenas grotescas apresentadas a sua frente. Nesse aspecto, a “essência” de “The Evil Dead” é infinitamente superior a qualquer outro filme já realizado, mesmo que tenha muito mais violência e sangue. Já o segundo filme da série, “Evil Dead II”, é na verdade uma refilmagem da mesma história do original, só que inserindo elementos de humor negro que inevitavelmente diminuíram sua carga de agressividade brutal. Porém, ainda assim é um bom filme de horror, amparado por um orçamento bem maior e efeitos especiais mais sofisticados.
Ambos os filmes foram escritos e dirigidos pelo jovem e competente cineasta Sam Raimi (que faria mais tarde a mega produção “Homem-Aranha”), e estrelados pelo hábil Bruce Campbell, que também foi produtor. Como já mencionado, há diferenças entre as duas produções mesmo porque não há uma sequência exata entre elas. O segundo filme é apenas uma variação da história do primeiro e está mais voltado para o humor negro. Já o primeiro filme é bem mais violento, repleto de cenas repugnantes e assustadoras, tanto é que foi proibida sua exibição na Inglaterra por dois anos, e mesmo assim ganhou vários prêmios em festivais sendo até hoje aclamado pelos fãs como um dos principais filmes de horror já realizados.
Desde 1978, o jovem Sam Raimi com a ajuda do produtor Robert G. Tapert e do ator Bruce Campbell, estavam planejando realizar um filme diferente e de impacto. Então um ano depois eles lançaram o violento “Within the Woods”, cuja história acabou dando origem em 1982 ao brutal “The Evil Dead”. Nada melhor que o escritor Stephen King para comentar esse projeto: “Eu gosto desse filme, é diferente dos outros”. O apoio de King foi fundamental para o sucesso da produção. A história é simples e sem novidades, girando em torno da descoberta de um livro antigo amaldiçoado chamado de “O Livro dos Mortos”. Esse artefato, confeccionado e escrito há mais de três mil anos atrás, com carne e sangue humanos, era composto de frases e passagens cabalísticas de rituais de sepultamento e feitiços funerários, que uma vez recitadas tinham o poder de ressuscitar demônios até então adormecidos, e forças malignas que vagam pelas florestas e pela escuridão da civilização, as quais uma vez despertadas, podiam se apossar dos vivos. “O Livro dos Mortos” nada mais é do que uma versão do famoso e obscuro “Necronomicon”, mito largamente explorado na literatura macabra do escritor Howard Phillips Lovecraft.
(Atenção: pode conter spoilers)
Um grupo formado por cinco jovens está em passeio nas montanhas do Tenessee e se hospedam numa velha cabana abandonada. Ashley (Bruce Campbell), sua namorada Linda (Betsy Baker) e sua irmã Cheryl (Ellen Sandweiss), além do casal de amigos Scott (Hal Delrich) e Shelly (Sarah York), procuram apenas bons momentos de diversão e descanso, não imaginando o inferno que os aguardava. Eles encontram no porão um estranho livro acompanhado de um gravador com uma fita, material pertencente a um arqueólogo que trabalhava em misteriosas escavações nas Ruínas de Kandar. Os jovens resolvem ouvir a fita, que reproduz a narração do arqueólogo falando de suas descobertas e explicando que involuntariamente invocou entidades demoníacas que tinham o poder de se apossar dos vivos. A única forma de livrar o corpo do espírito maligno era através do esquartejamento. E acidentalmente a fita recita um encantamento diabólico:
“Tatra amistrobin azarta, tatis manor manziz hounaz, ansobar saman darobza dahir saika danz deroza, kandar, kandar, kandar”.
(Nota do Autor 1: Não me responsabilizo pela citação dessas palavras e a possibilidade hostil de suas consequências...).
Dessa forma, os jovens inadvertidamente permitiram ressuscitar ferozes demônios “kandarianos” que estavam inativos. Os espíritos malignos estavam apenas aguardando a oportunidade de se manifestarem e se apossar dos humanos um a um, sobrando apenas o herói Ashley para combatê-los e lutar bravamente por sua vida.
São várias as sequências de destaque como a cena perturbadora em que Cheryl sai à noite sozinha pelo bosque e é estuprada violentamente por árvores vivas, possuídas por demônios. Ou ainda quando a mesma garota torna-se a primeira vítima de possessão, gritando com uma voz gutural aos seus amigos: “Por que vocês perturbaram nosso sono? Acordando-nos de nossa duradoura inatividade? Vocês morrerão! Como os outros antes de vocês! Um por um, nós vamos tomá-los!”. Essa sequência já é clássica e define apenas o início da carnificina sangrenta que estava por vir. O desfile de atrocidades continua quando Shelly é a próxima possuída e num momento de insanidade total, ela arranca a própria mão direita vagarosamente com os dentes numa cena grotesca. Após muito sangue, gosmas coaguladas, vísceras expostas, líquidos putrefatos, carne destroçada, ossos partidos, desmembramentos e cabeças decepadas, a noite infernal termina e o início da manhã reservaria um desfecho digno para o herói Ashley, permitindo várias interpretações e certamente fugindo do convencional clichê de final feliz. Sem dúvida nenhuma, uma obra prima do horror com algumas das cenas mais repugnantes e violentas já filmadas, tudo de forma avassaladora.
Tanto Sam Raimi como Bruce Campbell nasceram na mesma pequena cidade de Royal Oak (Michigan, EUA). Campbell veio ao mundo em 22/06/1958, seguido de perto por Raimi (23/10/1959). Uma vez jovens com afinidades em comum, como a preferência pelo cinema fantástico, eles se conheceram na adolescência e decidiram formar uma parceria que resultaria em verdadeiras preciosidades do gênero.
Sam Raimi é um profissional multifuncional, trabalhando como diretor, roteirista, produtor e até ator. Conhecido por seu talento ao manipular uma câmera com rápidos movimentos acrobáticos e cortes bruscos, seu primeiro filme de reconhecimento foi “The Evil Dead” em 1982 (ele tinha apenas 22 anos de idade), que formou depois uma trilogia com mais dois filmes produzidos em 1987 e 93 (N.A. 2: Em 1992 foi lançado “Uma Noite Alucinante 3” (Army of Darkness), completando a trilogia, contando as aventuras de Ashley na época medieval, mantendo a linha humorística do segundo filme e trazendo alguns bons efeitos especiais).Ainda no gênero horror, Raimi dirigiu “Darkman – Vingança Sem Rosto” em 1990 e “O Dom da Premonição” (2001). Também experimentou outras temáticas com a comédia policial “Dois Heróis Bem Trapalhões” (1985), o western “Rápida e Mortal” (95, com Sharon Stone), o suspense “Um Plano Simples” (98, um fenomenal thriller abordando a cobiça humana), o drama romântico “Por Amor” (99), até culminar no mega sucesso “Homem-Aranha” (2002), filme do famoso personagem de quadrinhos que transformou-se numa das maiores bilheterias da história e uma franquia de grande apelo popular. (N.A. 3: Em 2009 ele dirigiu o divertido “Arraste-me Para o Inferno” / "Drag me to Hell").O ator Bruce Campbell foi o astro principal da trilogia “Evil Dead” e demonstrou muita habilidade no papel de herói combatente de demônios ferozes. Sua amizade com Raimi proporcionou algumas participações especiais em pontas rápidas em filmes como “Darkman” e “Homem-Aranha”. Ele também experimentou a direção, sendo responsável por alguns episódios na televisão da série de fantasia “Hércules”, produzida pelo amigo Robert G. Tapert. Sua filmografia inclui ainda atuações na série de TV “Arquivo X” e no filme “Cine Majestic” (2001), dirigido por Frank Darabont.
Como curiosidades, podemos notar no filme algumas possíveis falhas totalmente desprezíveis por se tratar de “The Evil Dead”, como principalmente o fato de Ash, ferido várias vezes, não ter sido possuído por um dos demônios kandarianos, enquanto todos os seus amigos eram brutalmente transformados em mortos malignos. A reposta é simples: alguém tinha que sobrar para combater os zumbis e lutar por sua vida, afinal essa é a premissa de todo o filme. Outro possível erro foi quando Ash toma literalmente um banho de sangue na explosão de um cano e no momento seguinte ele está limpo novamente. O mesmo aconteceu com sua namorada Linda, que ao ser possuída transformou-se numa criatura hedionda repleta de feridas sangrentas e quando Ash a amarrou numa mesa para esquartejá-la com uma moto-serra, ela estava totalmente com o rosto normal e limpo. Como os demônios estavam manipulando a mente de Ash, criando confusões entre ilusão e realidade, essas cenas podem não ter o menor efeito.
O filme foi lançado no Brasil também em DVD com distribuição em bancas pela “LW Editora”, e a seção de “Extras” traz uma coletânea de 20 minutos com filmagens de testes de cena, onde podemos ver o nome do filme como sendo “Book of the Dead” (Livro dos Mortos), provável título inicial que depois foi alterado para o conhecido “The Evil Dead” (aliás, bem melhor e menos convencional). Outra coisa interessante notada no final dos créditos do disco é uma frase com a seguinte tradução aproximada: “The Evil Dead, a experiência definitiva em horror repulsivo.” (aliás, também concordo). E em Novembro de 2005, o filme foi novamente lançado em DVD com distribuição em supermercados e lojas, só que dessa vez através da “Spectra Nova Editora”, com preço popular.
Para concluir de forma também definitiva: Apesar de “The Evil Dead” ter sido conduzido por um diretor e atores ainda estudantes muito jovens e em início de carreira; ter um roteiro clichê com uma história simples e óbvia (porém elementos como cabanas abandonadas em florestas fantasmagóricas e povoadas por demônios são sempre alguns dos melhores ingredientes para um filme assustador); e ter efeitos especiais toscos (fato perfeitamente compreensível pelo baixíssimo orçamento da produção), o filme é um dos mais cultuados na história do cinema de horror e faz parte de qualquer lista dos mais preferidos de qualquer fã do gênero, geralmente liderando o topo das preferências, provando que mesmo com pouco dinheiro, mas com muito talento, pode-se fazer uma obra-prima de valor inestimável.
(N.A. 4: Uma pequena base desse texto foi escrito originalmente em 1989 e publicado no fanzine “Megalon”, abordando os primeiros dois filmes da trilogia. Foi atualizado em outubro de 2002, quando o filme completou 20 anos, acrescentando mais informações e novas impressões pessoais sobre a obra, e novamente atualizado em 06/01/10).
“A Morte do Demônio” (The Evil Dead, 1982)
(1ª versão postada em 25/11/05, 2ª versão postada em 06/01/10)
A Morte do Demônio (The Evil Dead, EUA, 1982). Renaissance Pictures. Filmado em Morristown (Tenessee) e Detroit. Duração: 85 minutos. Direção e roteiro de Sam Raimi. Produção de Robert G. Tapert. Produção Executiva de Robert G. Tapert, Sam Raimi e Bruce Campbell. Fotografia de Tim Philo. Música de Joseph Lo Duca. Efeitos Especiais de Maquiagem de Tom Sullivan. Elenco: Bruce Campbell (Ashley), Hal Delrich (Scott), Ellen Sandweiss (Cheryl), Betsy Baker (Linda), Sarah York (Shelly).