Devorador de Pecados (2003)


Por trás do disfarce do bem, esconde-se a alma do mal. E toda alma tem seu preço

Filmes que exploram mistérios religiosos obscuros sempre despertaram interesse por tratarem de um tema polêmico, delicado e curioso. Questões sobre o paraíso, vida eterna, o Bem, o Mal, inferno, demônios, seitas obscuras, sempre foram tabus da humanidade. Exemplos que comprovam essa idéia são o clássico “O Exorcista” (1973), sobre possessão demoníaca, ou o mais recente “Stigmata” (1999), sobre a manifestação sobrenatural das chagas de Cristo. Em ambos os casos, um ser humano foi vítima de um fenômeno inexplicável com implicações religiosas. Alguns outros filmes menores e pouco expressivos que também abordaram a mesma temática na virada do último século foram “Dominação”, com Winona Rider e “Fim dos Dias”, com Arnold Schwarzenegger.
A própria história da Igreja Católica é repleta de eventos sombrios e atrocidades cometidas em seu passado nebuloso, principalmente durante o macabro período marcado pela Inquisição, na loucura desenfreada da caça aos supostos feiticeiros e simpatizantes do diabo, onde uma infinidade de pessoas inocentes foram assassinadas das mais violentas e cruéis formas, através de decisões autoritárias, políticas e equivocadas da igreja.
Mais uma produção que enfoca esses assuntos polêmicos é o thriller sobrenatural “Devorador de Pecados” (The Sin Eater / The Order), que estreou nos cinemas brasileiros em 24/10/03, dirigido, escrito e produzido por Brian Helgeland, trazendo um elenco principal formado pelo trio Heath Ledger, Mark Addy e Shanny Sossamon (a mesma equipe com quem trabalhou em “Coração de Cavaleiro” em 2001), e ainda pelo veterano Peter Weller, o eterno “Robocop” do cinema.

A história traz um jovem padre rebelde de Nova York, Alex Bernier (Heath Ledger), recebendo a notícia da morte na Itália de seu antigo mentor que foi excomungado, Dominic (Francesco Carnelutti), em circunstâncias misteriosas. Eles fazem parte de uma secreta ordem arcana de religiosos conhecidos como carolíngios, a qual é renegada pela igreja. O monge Alex teve uma infância conturbada sofrendo com a perda da mãe que se suicidou cortando os próprios pulsos, e sendo posteriormente adotado e orientado pelo padre Dominic.
Para investigar a estranha morte do líder da congregação, Alex parte para Roma e conta com o auxílio de um amigo bem humorado, padre Thomas Garrett (Mark Addy), os quais juntos possuem um estranho currículo onde até inclui rituais de exorcismo. Ainda se junta à equipe uma antiga namorada de Alex, a bela pintora Mara Sinclair (Shanny Sossamon), que teve sérios problemas envolvendo possessão demoníaca e tentativas de suicídio e que estava foragida de um hospital psiquiátrico. Para complicar ainda mais as ações, surge também um misterioso cardeal, Driscoll (Peter Weller), que tem como maior ambição a sucessão do Papa e cuja real identidade e objetivos obscuros são um enigma podendo ter consequências fatais para o destino da humanidade.
Os padres investigadores descobrem estranhas marcas no peito do veterano religioso Dominic, como provável resultado de um antigo ritual proibido pela igreja tradicional, levando-os a acreditar na ação de um “Devorador de Pecados”, uma figura mitológica capaz de absorver os pecados de uma pessoa à beira da morte, transferindo para si a carga negativa de seus males, limpando sua alma e liberando a pessoa para uma morte em paz com uma passagem suave para o outro mundo.
O “Devorador de Pecados” é um homem imortal e com poderes sobrenaturais chamado William Eden (Benno Furmann), possuidor de grandes riquezas e enormes conhecimentos adquiridos em longos anos salvando almas perturbadas e absorvendo o mal dos pecadores. Depois de uma série de eventos se sucederem, com estudos de escritos antigos, investigações e revelações envolvendo a dupla de padres rebeldes e a bela artista Mara, o “Devorador de Pecados” é identificado e demonstra estar cansado de sua condição especial, planejando um destino diferente para o jovem padre Alex, facilitando o encontro entre ambos e interferindo em decisões importantes de sua vida, culminando num desfecho bastante previsível, porém ainda assim satisfatório, abrindo um bom leque de oportunidades para uma sequência.

Um destaque notável em “Devorador de Pecados” é a presença misteriosa de duas sinistras crianças órfãs (Mirko Casaburo e Giulia Lombardi), que servem de hospedeiros de crias de demônios, e que sem emitir uma só palavra, intimidam apenas com a macabra expressão fria dos olhares. Apresentar “inocentes” crianças em filmes de horror sempre foi um recurso bastante utilizado pelo cinema para tentar assustar o público, pois é inevitavelmente perturbador a exposição de belas e meigas crianças como um disfarce para criaturas malignas. Outros momentos favoráveis no filme são as cenas passadas no interior de obscuras catacumbas subterrâneas, intensificadas por um clima constante de claustrofobia de um ambiente tétrico tomado pelas sombras e um sentimento de antiguidade, palco de encontros suspeitos de seguidores de seitas religiosas mais obscuras ainda.
Com locações na Itália, em alguns momentos a fotografia está escura demais, talvez num recurso utilizado para encobrir uma certa precariedade nos efeitos especiais, apesar do generoso orçamento em torno de US$ 38 milhões. A propósito, os mesmos tiveram que ser refeitos a pedido dos produtores após uma resposta negativa do público nas exibições preliminares de teste.
Como curiosidade temos uma homenagem ao clássico “O Exorcista”, quando o padre Alex diz algo como “Hoje não é um bom dia para isso”, numa referência a cena similar do filme de William Friedkin, durante uma sessão de exorcismo.
“Devorador de Pecados” não é um filme de horror com muito sangue, violência e mortes. É um thriller sobrenatural que explora alguns dos mistérios obscuros e o poder sufocante da religião, não sendo uma obra comum de fácil assimilação ou para todos os gostos. Para apreciar sua história, é recomendável uma predisposição do público em se envolver num clima de conspiração religiosa, tendo contato com elementos que sempre despertaram questionamentos na história da humanidade. A história é envolvente, apesar que não manteve o mesmo ritmo durante todo o tempo, tornando-se um pouco cansativa em alguns momentos, e que poderia investir mais nas situações que se destacaram como a presença satânica das crianças órfãs e nas sequências ambientadas nas tenebrosas catacumbas nos subterrâneos de Roma.

O cineasta americano Brian Helgeland nasceu em 1961 em Rhode Island, sendo filho de noruegueses. Ele é mais conhecido como roteirista de alguns filmes importantes e de temáticas variadas como os blockbuster de ação “Assassinos” (1995), com Sylvester Stallone, e “Teoria da Conspiração” (1997), com Mel Gibson, o noir “Los Angeles – Cidade Proibida” (1997), com Kevin Spacey, a ficção científica pós-apocalíptica “O Mensageiro” (1997), com Kevin Costner, e o policial “Dívida de Sangue” (2002), com Clint Eastwood. Além de escrever o roteiro do quarto episódio (“O Mestre dos Sonhos”) da série “A Hora do Pesadelo” em 1988. Na direção, já trabalhou na série de TV “Contos da Cripta” em 1989 e na aventura medieval “Coração de Cavaleiro” em 2001.
O jovem ator australiano Heath Ledger nasceu em 1979 e ainda tem uma carreira bem curta, sendo descoberto pelo cinema americano em 2000 no drama da guerra da independência americana “O Patriota”, com Mel Gibson. Um ano depois já estava sendo escalado novamente para uma produção de Hollywood, atuando em “Coração de Cavaleiro”.
Já o experiente ator Peter Weller, nascido em 1947 no estado americano de Wisconsin, é eternamente lembrado como o homem por trás da armadura de aço do policial do futuro no clássico moderno da FC “Robocop” (1987), de Paul Verhoeven, num papel que ele repetiria também na primeira sequência filmada em 1990. Outros trabalhos interessantes de sua filmografia incluem ainda o horror aquático “Leviathan” (1989) e o drama fantástico “Mistérios e Paixões” (1991), dirigido por David Cronenberg. Em “Devorador de Pecados”, é impossível não notar como Peter Weller está envelhecido e com os poucos cabelos que ainda lhe restam bastante tomados pela cor branca. Como ele não tem aparecido com frequência no cinema ultimamente, um espectador desatento pode até nem reconhecê-lo num primeiro momento na pele do ambicioso Cardeal Driscoll.

Sangue que entra. Sangue que sai” – trecho de um ritual religioso proibido, para a absolvição de pecados graves.

“Devorador de Pecados” (The Order / The Sin Eater, 2003) – avaliação: 6 (de 0 a 10)
site: www.bocadoinferno.com / blog: www.juvenatrix.blogspot.com (postado em 02/02/06)

Devorador de Pecados (The Order / The Sin Eater, Estados Unidos, 2003). 20th Century Fox. Duração: 102 minutos. Direção, roteiro e produção de Brian Helgeland. Música de David Torn. Fotografia de Nicola Pecorini. Direção de Arte de Branimir Babic e Domenico Sica. Desenho de Produção de Miljen “Kreka” Kljakovic. Edição de Kevin Stitt. Elenco: Heath Ledger (Alex Bernier), Shanny Sossamon (Mara Sinclair), Benno Furmann (William Eden), Mark Addy (Thomas Garrett), Peter Weller (Cardeal Driscoll), Francesco Carnelutti (Dominic), Mattia Sbragia (Bispo), Mirko Casaburo (Garoto), Giulia Lombardi (Garota).
Site oficial: www.theordermovie.com